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  Quando afasta dos contribuintes a riqueza que os próprios produzem, o leviatã justifica a sua acção – de resto, semelhante à de qualquer pilhante – com motivos de pretensa probidade moral. É imprescindível pagar impostos porque, argumenta o monstro, eles são utilizados para a prossecução de bens sociais comuns a toda a colectividade. Urge reconhecer ao Estado o direito de prima nocte fiscal porque, poderia bem arguir Pedro Passos Coelho, a República é senhora de bem: rabisca – na melhor tradição do nosso provincianismo fontista - a terra pátria com pontes e auto-estradas, edifica em Beja aeroportos que ninguém utiliza e vomita estádios em território controlado pelos beneméritos do Hamas – tudo aquilo de que necessitamos para reposicionar Portugal na senda da prosperidade, portanto.

  Marianne, contudo, empresta o apelido a todos os grandes desastres colectivos do Portugal contemporâneo. Do alto da sua sensatez, cáfilas inteiras de ex-primeiros-ministros, sabichões de poltrona e burocratas bem-intencionados legaram a Portugal uma dívida impagável, uma capital subserviente e uma carga fiscal insuportável. A sua herança são os grilhões que asfixiam Portugal – e isso é tão perceptível como a conjuntura política de que brotou a presente catástrofe. Exaltados pelo entusiasmo de uns e o silêncio de outros, os proponentes dos “investimentos estratégicos” e da despesa “pública de qualidade” conduziram o país à precisa situação de neo-sovietismo que hoje lutamos por abandonar.

  Não há obrigação mais comummente atribuída ao adamastor que um papel cimeiro, senão exclusivo, na protecção dos mais frágeis. O Estado deve agir – i.e., nacionalizar o suor de quem trabalha -, dizem os diáconos do nosso socialismo transpartidário, por ter como incumbência a preocupação com quem pouco possui. Como hino ao estado-espoliador, o argumento dignifica os socialistas e vilifica os que preconizam um Estado mais pequeno. Sem razão, todavia: se há algo em que radica a minha militância no CDS – e, porventura, parte significativa do meu conservadorismo gladstoniano -, é a crença despudorada numa sociedade capaz de organizar-se e em que a acção não é anátema. Afirmar-se que precisamos da coerção estatal para combater males sociais como a pobreza ou a indigência é um insulto a qualquer indivíduo que não padeça de sociopatia. Se nos ajudamos, fazemo-lo por nos preocuparmos uns com os outros – não por recearmos a aspereza de um tribunal ou as provações impostas por uma cela.

  É importante ter a ousadia de afirmá-lo: nenhuma acção de redistribuição estatal de riqueza é moralmente justificável ou eticamente compreensível.
Se age resguardado pela convicção de que procede em nome de interesses que, embora seus, são axiologicamente superiores aos do contribuinte que saqueia, o Estado reconhece assemelhar-se à maioria dos carteiristas: independentemente do que o norteia – o amor à família ou a escravidão de um vício -, porém, um criminoso de rua arrisca a prisão. O mesmo princípio deveria aplicar-se a qualquer governo – independentemente dos objectivos com que se comprometa. O combate à pobreza não pode justificar o banditismo de Estado, da mesma forma que a aposta num crescimento artificial não deve hipotecar o futuro dos portugueses de amanhã.

  Portugal debate-se hoje com a indesejável circunstância de ser obrigado a ajustar a realidade do Estado ao estado da realidade. Dispomos de um governo cujas atribuições não conseguimos pagar e cujos grilhões somos incapazes de suportar. Se por um lado saqueia a carteira dos portugueses, o leviatã atrofia-lhes, por outro, a energia, o esforço e a capacidade de inovação. O movimento de reforma do Estado, anunciado pelo primeiro-ministro e cuja coordenação foi atribuída a Paulo Portas, poderia ser uma resposta contundente a esse estado de coisas. Dificilmente, porém, o será: o regime encontra-se agrilhetado a si mesmo, e seria ingénuo expectar que partisse dele uma proposta sincera de transformação. Pese ou não o seu reformismo, as sugestões dos elementos mais audazes de quem pensa a reforma do Estado tenderão a cair, mais cedo ou mais tarde, perante a inexorável pressão do adamastor e da máquina sindical que o sustenta. Para já, Portugal deverá contentar-se se algo, de todo, for alterado. Mas deverá manter-se consciente de que, a aparecerem, essas reformas não serão suficientes – e de que, sem elas, a nossa caminhada para o abismo só terminará quando lá chegarmos.

Por: Rafael Borges




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